quarta-feira, 1 de junho de 2016

E X I S T T Ê N C I A

   Passei por estas ruas por pelo menos quatro anos e nunca notei suas cicatrizes. Nunca havia pisado ali, naquelas artérias urbanas marcadas com os traços dos artistas de rua. Não sei por que estou fazendo isso. Minha respiração rasgava meu juízo e a chuva furava meu corpo como um milhão de agulhas. Eu corria pra fugir de algo que estava dentro de mim, me perseguindo em Eu.

   Esbarrei em alguma pilha de lixo e caí. Meu corpo estava molhado e sujo. Sujo de algo que não sei o que era, mas com certeza era a sobra de alguém, que seria o tudo de outrem. E eu havia destruído isso. Herói ou vilão?

Me rendi. Fechei meus olhos e gritei minha existência para fora.

   O meu campo de visão comprimiu a minha frente e todas as galáxias cabiam em minha pupila. Vi todas as constelações e planetas. Cabia tudo na ponta do meu dedo.

   Estava caindo. O vento trucidava meu peito, enquanto cortava meu rosto. Estava caindo em alta velocidade. Eu estava mais pesado que o céu. Me sentia amarrado a um cometa.

  Eu assistia a cidade e suas luzes, seus carros e sua solidão. Eu iria me chocar com o cinza.
  Abri minha boca. Minha existência começou a vazar. Meu peito explodiu.
  Carros buzinavam, motos desviavam. Eu estava voando dentro de um túnel.
  As luzes me confundiam. Buzinas. Sons, Pneus derrapando.

AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
  Meu peito explodiu novamente.

  Fiquei surdo. Sentia o cheiro da minha casa, que nunca senti em toda minha vida, talvez porque nunca precisei identificar onde estava. Minha tatuagem queimava. Queimava muito. Tirei do peito duas flechas. Nenhum arco.

   Minha existência escorria pelos olhos.

   Eu tentei guardar cada gota, mas elas flutuavam pra longe. Aqui do lado.

   Não tinha profundidade. Tudo estava longe, mas era a palma da minha mão.

   Meu peito explodiu novamente.

  Choquei-me contra a mobília e senti dor.

  Tudo voava. Eu voava.

  Atravessei a janela e estava em meu passado.

  Me vi com cinco anos num campo de futebol, sozinho. Tentei me alcançar. Não podia fazer isto.

  Estava me olhando. Como eu era parecido comigo.

   Estava molhado, sujo, machucado. Mas estava me olhando jovem, limpo e saudável. Olhei para mim e me escondi para não me ver. Eu não podia. Mas eu senti que eu sabia que já havia me visto. Agora tudo faz sentido.

   Antes que eu pudesse conversar comigo, explodi. Meu primeiro beijo, minha primeira mentira, meu primeiro amor.

   Todas as casas por onde morei começaram a ser construídas no meu corpo. Cada gota de álcool entrava em meus olhos a força. AH! Sentia minhas veias lacerando. Minhas unhas começaram a saltar dolorosamente pra fora. Minha vida começou a ser construída na minha existência crua.

Escuro.


   Eu estava nu. Caído em posição fetal. Todas as articulações do meu corpo doíam. Não havia pele, apenas músculos e sangue.
   Versões de mim mesmo começaram a costurar tecido humano em meu corpo. Eu me vi. Vi vários de mim. Vi também a dor.
   A minha existência estava sendo construída por mim mesmo, no meu corpo fraco, imaturo, despreparado e inicial.
   Eu trazia órgãos para colocar em mim.
   Minha memória estava acabando...

   Eu me encarava e sorria sadicamente. Eles me odiavam. Odiavam a vida que eu criei a eles. Tentei arranhar dentro da prisão do meu corpo e libertar minha existência. Explodi meu peito e fugi de dentro de mim. Estava com chagas e sangrava muito. Meus Eus me encaravam e me batiam. Confrontei todos eles, todos eus. Dilacerei todos, como se fossem meus medos e defeitos.

   Me venci, perdi e ganhei. Agora eu era perfeito?

   Acabei de realizar uma chacina. Matei todos eu e só restou eu. O mundo foi comprimido e foi enfiado em minha garganta. Engoli o mundo com dor. Fui obrigado a isso. Tudo doía e eu não sentia nada, a não ser dor. Foi comprimido dentro de mim como um cabo inteiro.

Adeus!
Estava no portão e minha casa. Uma chuva forte se formava. Eu não lembro quem sou. Disparei a correr.



*Conto do livro O Porão da Alma*

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